DESASSOSSEGO: e não é euforia verde/amarela
Tenho uma
boa notícia: Deus - também - é brasileiro.
"Perder" - na verdade ganhamos
essa copa de maneira epicamente humilhante foi a forma mais digna e
notória de mostrar ao mundo o que vivemos aqui: um torpor vacilante. Os gestores públicos fazem de conta que
promovem milagres sociais, a sociedade faz de conta que não está enxergando e
assim é a receita para uma boa fraude: fé cega e negligente.
Caiu a máscara e
agora chegou a hora de cair na real.
Olhar pro espelho, limpar a maquiagem e encarar o trabalheira pela
frente: muita água e sabão, ensaboa meu irmão.
Projetar
uma expectativa de vitória pessoal em 22 profissionais que são bem pagos - por
nós - para realizarem seu ofício, parece-me fuga e preguiça. Uma boa dose de
humilhação é ótimo para despertar.
Deus é
brasileiro e está cansado de esperar - de braços abertos - que criemos vergonha
na cara. Façamos nossa parte, porque a
Dele, já foi feita faz tempo.
"Morrendo
de vergonha da ridícula mania de levar tudo na boa." (Lenine e Gabriel)
"Não teve Copa
A ideia parecia perfeita. Depois de
12 anos de continuidade com programas importantes de transferência de renda,
que levaram 32 milhões de brasileiros à classe média, o Brasil estaria em
condições de mostrar ao mundo sua nova imagem. Seria a consagração do país
diante do cenário internacional.
Mostraríamos um Brasil alegre,
orgulhoso de si mesmo, onde empreiteiras e trabalhadores cantam de mãos dadas o
hino nacional e se veem como sócios em um novo e radiante momento de
desenvolvimento. Publicitários estariam a postos para mobilizar afetos de
superação entre um gole e outro de Coca-Cola. Só sorriso no ar.
Essa era a verdadeira função da
Copa do Mundo: completar a narrativa política da transformação nacional
apelando ao acolhimento do olhar estrangeiro.
Bem, o problema é que não teve
Copa. Houve jogos, um campeão, estádios em Brasília, Cuiabá e Manaus, mas não
houve Copa. Não apenas porque apareceu uma outra imagem do país: essa da nação
que se estagnou em um ponto no qual o desenvolvimento não consegue se
transformar mais em qualidade efetiva de vida. Ponto no qual operários são
mortos em construção como algo que, nas palavras de Pelé, "é normal, pode
acontecer", quase como uma lei da natureza. Na verdade, não houve Copa do
Mundo porque o povo brasileiro saiu do lugar.
Ele tinha um lugar previamente
definido. Sua função era celebrar e aclamar. Com casas pintadas de verde e
amarelo e, como se diz, com "alegria contagiante", o povo brasileiro
deveria abraçar seu novo lugar no mundo. Mas algo saiu definitivamente do
lugar. O enorme aparato policial-militar montado para impedir que o povo saia
da coreografia da felicidade imposta e a brutalidade governamental contra
grevistas, como vemos mais uma vez em São Paulo, tudo está aí para não deixar
negar. Não, o povo brasileiro não está feliz, pois se sente como alguém que
teve sua paixão usada por outros.
Sinal dos tempos. No chamado
"país do futebol" pela primeira vez uma Copa do Mundo não trará
dividendos políticos, mas mostrará uma população consciente da tentativa de
espoliar seus sonhos. População cuja revolta pode explodir a qualquer momento,
da forma mais inesperada possível, mesmo que seja governada por pessoas que
nada mais tem a oferecer a não ser a polícia.
Algo mudou de maneira profunda, mas
os publicitários, estrategistas e políticos não perceberam. Não há grande
evento que consiga esconder o desencanto de um povo.
Por isso, nada mais honesto do que
dizer: não teve Copa. E quem mais ganhou com isso foi o Brasil."
Artigo Vladimir Safatle publicado
na Folha nesta terça, 10/06.
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