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N’oublie pas que je viens des tropiques (Não te esqueças que venho dos trópicos) 1945, de Maria Martins. Bronze, 93 × 122 × 66 cm, 84, col. Hecilda e Sergio Fadel, Rio de Janeiro


Entre 1946 e 1969, tempo em construiu a obra "Étant Donnés", inspirada em sua paixão por Maria Martins, Marcel Duchamp escreveu 35 cartas à amante.



Nova York, 1946 ou 1947
Quinta-feira à noite
Apesar de tudo que você diz, eu gosto dessa solidão no ateliê, solidão que no fundo não passa de uma revisita à minha própria individualidade, dando a sensação de liberdade entre quatro paredes. Mas, se você quiser ser uma com essa minha liberdade, há espaço para dois e uma liberdade ainda maior nascerá disso, já que a sua protegerá e aumentará a minha, espero, e vice-versa. Você tem um problema de suscetibilidade a resolver _asseguro-lhe que se em cada momento suscetível você aplicar uma pomada de confiança absoluta, o resultado será doce e lhe curará docemente dessa herança suscetível de seus ancestrais.
Você já me conhece o suficiente para saber que pela primeira vez na minha vida tenho em relação a você uma aceitação completa, sem rebelião de qualquer sorte, que cheguei a lhe amar puramente, ou seja, sem os artifícios de vaudeville que em geral acompanham as tribulações amorosas de duas pessoas.
Tenho ânsia de ouvir as histórias do mar. Tento imaginar e construir o que posso a partir de sua carta bastante explícita da praia, mas o principal é o som da sua voz que falam muito mais do que qualquer explicação que você possa dar. Poderia até dizer que sua voz mudou como a de um menino de 14 anos. E que a grande e profunda alegria que sai dela, tenho certeza, é a expressão de uma felicidade distante recém-nascida.
É preciso também que nossos "eus" estejam sempre de acordo e que evitemos as trocas mundanas de antagonismos conjugais (nada necessárias).
Espero que essa carta chegue no sábado pela manhã. Mando por avião na sexta-feira pela manhã.
M
*
Edincott, 6 de setembro de 1948
Findo o torneio. Joguei bem, faltando meio ponto para entrar na final. Encantado comigo mesmo. Retorno amanhã a Nova York, quando será tarde demais para lhe escrever, acho; mas espero ter notícias suas falando de seus planos.
Esses oito dias no campo me fizeram um bem enorme. Tive muito tempo de lazer entre as partidas e pensei muito em nós. Como é a simples a vida quando pensamos só no nosso "eu" interior. Fiz uma excursão pelo seu "eu" e encontrei ali o que achava que ali estava, só pelo aspecto exterior. Encontrei "coisas" que não têm nome numa linguagem mais poética. É preciso que vivamos com essas "coisas" e com essas "coisas" apenas. O resto, sobrevivência física, deve ser reduzido ao mínimo.
Volto amanhã para encontrar minha pele seca sob hastes de aço _só você pode entender essa frase.
Até comecei a compor a mulher. (A lápis).
O inverno parece que será bom.
Naturalmente, li nos jornais que você fez uma viagem segura e agradável.
Estou ansioso para chegar a Nova York para ler sua carta ou telegrama.
Amor
*
Nova York, 31 de maio de 1939
Você deve ter recebido minha carta no dia seguinte, já que não sinto que lhe abandonei. Nessa carta, dou todas as informações sobre o envio das caixas, Schweitzer e uma exposição em Nova York. Você gosta do título "Árvore do Amor"? Vi isso ontem numa imagem de Épinal. Diga-me o quanto antes se quer falar com Kurt [Valentin] e Sidney Janis sobre uma possível exposição em Nova York.
Por aqui, nada. Jantei com os Sweeney que vão para a Europa no dia 15. Sempre os mesmos.
Mas nossa mulher e está pronta e vai para o moldador amanhã. Tenho a intenção de trabalhar muito no gesso já que não vejo mais nada na massa de modelar. Não estou nem contente nem descontente; não posso mais acrescentar ou remover nada; é o que é.
Vi também Donati que espera a chegada de Claire [Donati] a qualquer dia. Ela também vai a Paris com as crianças em 15 dias.
Também já lhe disse que o Museu de Chicago vai fazer uma exposição da coleção Arensberg no outono.
Eles me convidaram para o dia 19 de outubro. (Vernissage) vinda a Chicago. Os Arensberg vão _catálogo de luxo. Toda a pompa. Você deveria ir também. Então organizemos essa exposição em Nova York o mais rápido possível.
Enquanto espero, fico cada vez mais interessado na mulher de pele que espero ver em pele em 1º de setembro. (Com ou sem pintura).
Não quero lhe aborrecer mais com minhas invectivas a respeito da vida que você é obrigada a viver. Só espero que você reduza ao mínimo os aborrecimentos ao não pensar muito neles. Você não falou de A.M. Isso é muito mais importante. Como está a situação agora?
No fundo, minha pequena, estou profundamente entristecido ao ver nossa vida se desbotar rapidamente sem que nenhum de nossos sonhos tomem forma. Será que nos falta coragem? Por que nos devemos subjugar se nada é realmente um obstáculo? Eu lhe amo, mas gostaria de lhe amar melhor.
Amor
*
Nova York, 8 de novembro de 1949
Esta carta é para que você saiba que recebi sua carta ontem e seu telegrama hoje pela manhã anunciando sua partida no dia 16 e chegada a Nova York no dia 21, no Queen Elizabeth.
Entreguei sua mensagem aos Donati, que partem para o Rio nesta tarde.
Pedirei um passe à Cunard Line e lhe encontrarei provavelmente nas bagagens sob a sua letra "M". Tentarei até mesmo entrar no navio.
Em relação ao hotel, é talvez mais simples que você vá diretamente ao St. Regis na chegada e o mantenha como endereço permanente. No dia seguinte, posso reservar um quarto em meu nome em outro hotel onde você poderá ficar. Mas podemos arranjar tudo isso quando nos encontrarmos.
Sinto-me estranho com a ideia de que nos próximos dias você estará por aqui.
Mande-me um telegrama do navio assim que zarpar, só duas palavras, "En Route", sem assinatura.
E, acima de tudo, venha logo, amor.
*
Nova York, 16 de agosto de 1951
Chegou sua carta de 7 de agosto.
Boa festa mas triste festa. Seria melhor se estivéssemos juntos. Separados como estamos, essas datas só insistem na nossa separação e são mais penosas do que agradáveis.
Pelo menos você está mandando uma foto.
Vi Glarner ontem, um abstrato suíço-americano convidado a São Paulo. Ele disse que uns 37 ou 38 artistas americanos foram convidados por um comitê (Richie, do Museu de Arte Moderna etc.).
Todos se espantam com o valor enorme dos prêmios. Pode mesmo haver um prêmio de US$ 50 mil, ou mesmo três deles (escultura, pintura, gravura)? Entre nós, é absurdo.
Só espero que os valores sejam divididos entre prêmios menores.
Não se esqueça que viajo no dia 24 de agosto por 12 dias. Estarei de volta em 5 de setembro. Escreva:
M.D.
Chess Tournament
Syracuse University
Syracuse - NY
Passedoit (a galeria, lembra-se?) me pediu seu endereço para algo que não entendi muito bem. Dei o endereço de sua irmã (37 Eduardo). É certamente algo sem interesse para você.
Sem notícias de Mary Callery desde o ano passado. Não sei onde ela está, Long Island ou França. No fundo, nunca houve grande simpatia entre nós. Ela me detesta como artista e, como indivíduo, não posso ser útil a ela.
Sidney Janis voltou da França e vou vê-lo em breve para ouvir os argumentos sobre seu "calendário" do ano que vem. Diga-me se você tem qualquer projeto com ele para Nova York (exposição na galeria) e em que época você gostaria de fazê-lo. Tudo isso seria simples de resolver se você estivesse aqui para viver um pouco como eu e você gostaríamos.
Amor
*
Nova York, novembro de 1968 ou março de 1969
799 Broadway
Escrevo voltando aqui no fim de outubro, sem qualquer notícia sua há um ano.
Você se esqueceu do meu endereço (embora seja fácil de decorar).
Escreva pelo menos alguma coisa para que eu saiba que você existe.
Nada acontece de interessante para mim aqui depois de dois anos de exposições em Londres e Paris.
Sinto-me realmente mais livre para não fazer nada desde que posso culpar meus 80 anos por me recusar a fazer atividades entediantes.
E você, diga-me em que está trabalhando, se vai a Europa neste verão.
Vou a Paris nos primeiros dias de abril e você pode me escrever poste restante Neuilly sur Seine entre abril e outubro.
Até logo, talvez.
Amor

Obras e contexto:
Marcel Duchamp e Maria Martins


Parece-me que Duchamp deixa-se encarnar por um Eros hesiódico.  Ama as histórias do mar contadas por Maria, ama sua voz, ama o cotidiano vivido ao seu lado, ama a mulher.  Deixa-se encarnar de forma apaixonada e ardente.  Conhece o Caos.

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